Mar fêmea, exposição de fotografias de Nelson d’ Aires

Valter Hugo Mãe, 2009

Quem vive de encontro ao mar conhece dois sentimentos mais fortes, o desejo de partir e o martírio de esperar. É porque alguém parte que outros aprendem a espera, e esta fica sobretudo do lado das mulheres, esses humanos mais parecidos às flores e capazes de fincarem os pés na areia como sondas emocionadas que perscrutam incansavelmente as águas. As mulheres conferem ao mar o seu atributo feminino, põem-se diante dele, e quantas vezes dentro dele (que na minha terra foi uma mulher quem se atirou à tempestade para salvar um náufrago que se via morrer a uns metros depois das ondas loucas), e elas organizam cada pormenor da vida a partir dali: entre os barcos e o peixe, a educação e a esperança difícil de envelhecerem todos juntos, seguros, como se cada um tivesse a certeza de que mais dia que passa é uma sorte.

As fotografias de Nelson d’Aires percebem muito bem esta condição à tangente do trágico. Percebem muito bem o monstruoso tamanho do mar que, sempre deitando-se tão ao pé de nós, nos parece chamar. Há uma espiritualidade profunda que justifica a coragem com que as gentes entram na boca desse monstro para o conquistar tão efemeramente. Há uma festa fugaz e um folclore que vai perdurando, desde logo nos ritos religiosos, na convicção de que algo invisível existe para tomar conta de todos, mas que nunca afasta esse perigo de sempre e sempre temido. Porque esperar também é esperar pelo que não vem, até que o coração se convença de que chega a hora de voltar a casa e suportar a dor.

As fotografias de Nelson d’Aires mostram o momento mais feminino do mar, esse ponto de espera em que ciclicamente o quotidiano de muitos se torna. Todos os dias a água devolverá quem foi, ou o atrasará para um medo crescente, ou não o devolverá de todo, para o desespero de quem fica vivo. É esse momento de sorte ou azar que se prepara nas imagens deste fotógrafo. Prepara-se a festa ou o funeral, e mostra-se a expectativa, um certo abandono ao que o acaso quiser decidir.
Esta será uma sina antiga, e antigas parecem as suas imagens, com o granulado acentuado do preto e branco e com a essencialidade da narrativa que contêm. São imagens que crescem por intensificação, mais do que pela profusão de elementos ou referências. Estamos no domínio de uma forte subjectividade, no qual o olhar do fotógrafo se impõe decisivamente, propondo uma leitura através dos seus maneirismos como se nos obrigasse a atender àquilo em que realmente acredita, como só assim se pode fazer arte. Perante estas fotografias havemos de entender claramente a preferência pelo espiritual do mar, que leva ao efeito cabal da homenagem às gentes do mar, cheias de especificidades e dotadas de uma vida outra, de difícil expressão mas tão expressiva.

O trabalho deste fotógrafo tem sido invariavelmente marcado pelo registo da espontaneidade das pessoas comuns quando vistas pelo seu lado invulgar ou excepcional. Nelson d’Aires tem feito colecção daquela mistura estranha da fantasia com a realidade – e a realidade é toda ela dotada de fantasia –, porque as mais das vezes fascina-se com captar a transfiguração assimilada pela sociedade, seja de modo voluntário ou não. Quero dizer com isto que o seu trabalho é reconhecido grandemente pelo fascínio pela transfiguração que advém de duas condições distintas; a voluntária, observada nas tradições, por exemplo, como as que acontecem em romarias ou festejos populares, invariavelmente marcadas por crenças religiosas, onde encontramos os populares recriando personagens que remontam à mitologia de todos; e a involuntária, observada quando uma força maior obriga a um reposicionamento perante todas as coisas, como a contingência de um fogo ou a fatalidade de uma profissão ligada aos humores do mar. Em todas estas situações a vida está no limiar da mudança, como que comprometida com o incerto, reajustando-se, reafirmando-se sempre como perecível, vulnerável e mesmo ao dispor.

Mar Fêmea é o trabalho da espiritualidade que acontece quando a arte verdadeiramente se compadece com os homens, ao invés de os manobrar para valores relativos e meramente estéticos. Mar Fêmea é a afirmação de uma atitude humilde de admiração e aprendizagem com quem sabe algo sobre o duro ofício de sobreviver. Parece-me que essa é a procura essencial de tudo quanto Nelson d’Aires fotografa, o esforço da sobrevivência, gerado numa natureza com muito de insondável, visível num quotidiano de inesperados e orações. Resulta, como podem ver, em algo excepcional.

Valter Hugo Mãe, 2009

 


Sérgio C. Andrade
(P2, Público, 20.03.2009)

Há um fundo permanentemente negro nas fotografias de Nelson d’Aires (n. Vila do Conde, 1975). Os raros momentos de luz são os que vêm do mar, mas sempre toldado por um céu irremediavelmente já rendido à noite. São apenas reflexos (relâmpagos, quase) do mar mais íntimo da terra, e por isso mais conforme com a natureza do feminino, como se depreende do título da selecção de fotografias, Mar Fêmea, que Nelson d’Aires expõe na Kgaleria, em Lisboa, até 28 de Março.

Jornal Público, 20 de Março de 2009

Um texto de valter hugo mãe, outro autor vilacondense que sabe bem de que realidade falam estas imagens, explica essa associação. “Quem vive de encontro ao mar conhece dois sentimentos mais fortes, o desejo de partir e o martírio de esperar. É porque alguém parte que outros aprendem a espera, e esta fica sobretudo do lado das mulheres, esses humanos mais parecidos às flores e capazes de fincarem os pés na areia como sondas emocionadas que perscrutam incansavelmente as águas.”

As fotografias de Nelson d’Aires “mostram o momento mais feminino do mar” – acrescenta o escritor de O apocalipse dos trabalhadores -, “com o granulado acentuado do preto-e-branco e com a essencialidade da narrativa que contêm”. E essas narrativas são as de uma terra de fortes tradições, com as das festas, romarias e outros rituais religiosos. Mas também – e principalmente, aqui – as das horas difíceis vividas à beira do mar, à espera. “Porque esperar também é esperar pelo que não vem, até que o coração se convença de que chega a hora de voltar a casa e suportar a dor”, escreve valter hugo mãe.

Nelson d’Aires é um fotógrafo autodidacta, que, depois de dez anos a trabalhar no sector da construção civil, decidiu abraçar a aventura da fotografia e do fotojornalismo. No seu currículo tem o Prémio Reportagem da 7ª edição do Prémio Fotojornalismo Visão/BES, em 2007, por um trabalho sobre a trasladação da Irmã Lúcia. Integra actualmente o colectivo Kameraphoto e tem realizado (ou participado em) sucessivas exposições online e em diferentes galerias e espaços públicos por todo o país.

A exposição Mar Fêmea terá uma evolução até ao dia do seu encerramento, e, durante a sua permanência na Kgaleria, serão realizadas novas fotografias, que substituirão as anteriores.

http://artephotographica.blogspot.pt/2009/03/mar-f-e-mea.html