TRANSPARÊNCIAS EM VIAGENS NA MINHA TERRA

Fernando Paulouro Neves

O que pode haver de comum e diferente na forma de olhar esta realidade nossa, a Covilhã e a Serra da Estrela, de dois fotógrafos, o Augusto Brázio e o Nelson D’Aires?
De comum, bem visível no projecto “Viagens na Minha Terra”, há decerto a paixão pela fotografia, entendida como uma forma de arte, não celebratória do bonitinho e do postal ilustrado, mas introspecção pura à realidade no desafio de ver por dentro das coisas.

Esta questão prévia é afluente a todos os olhares que eles puderam fazer nos seus ensaios fotográficos, para ambos um ofício de paciência, como o Eugénio de Andrade gostava de dizer da poesia. Eles nunca se encontraram nos caminhos do território e as fotografias são questão que cada um tem consigo mesmo.
Invisíveis na paisagem, eis como eu os defino, depois de olhar as fotos, ainda em bruto, de um e de outro, em que se há alguma coisa de comum é o intimismo diferenciador que eles colocam na arte de ver as coisas.
Isso permite que elas se tornem um complexo de ideias, como se tivessem vida própria, para lá da sua própria existência, interrogando, questionando. Estaremos, porventura, uma vez mais, face àquela magistral definição de Lorca, quando ele disse que as fotografias criavam a ilusão de eternidade?

Talvez. Mas o que importa assinalar, a voo de pássaro, é o meu olhar sobre os olhares. A primeira coisa que me vem ao pensamento é que na duplicidade de olhares há talvez a convergência do desafio (inalcançável, como o de agarrarmos uma estrela!) de suspender o tempo no exacto momento em que a máquina dispara. Não se suspende o tempo, mas alcança-se, na arte final, a sua substância, o que não é pequeno milagre, para que a memória guarde o instante dessa procura de real.

Dito isto, gostaria de sublinhar, em Augusto Brázio, a densidade do seu trabalho. É como se a imagem interiormente se dissolvesse na própria névoa, captando a identidade fugidia do tempo, quando a neblina recorta as árvores e as coisas e as transfigura. Essa densidade introspectiva, esse intimismo, que também se encontram nos retratos e nas particularidades da montanha, tem na luz coada do dia ou da tarde e nas sombras elementos imprescindíveis para a aproximação ao real e para convidar o que olha, distanciado, para as fotos, a viajar pela imaginação.

Em Nelson D’Aires, encontrei o propósito fascinante de, através da fotografia, ir ao interior de micro-realidades que interrogam o contexto, os detalhes e as circunstâncias do tempo, se quisermos de sentido universalista, rompendo a certidão meramente local, como se a “alma” da interioridade fosse sempre de leitura mais vasta. Há uma casa isolada na serra, iluminada, que suscita logo uma metáfora sobre o silêncio e a solidão, quando a noite começa a descer sobre o mundo. Outras, trazem como fio condutor o rasto do esquecimento. Mas há também rostos solares, pedras de abrigo, instantes.
Afinal, o tempo talvez possa ser suspenso, como a brevidade de um raio, para a vida seguir dentro de momentos.

Fernando Paulouro Neves

Covilhã, 22 de Outubro, 2019